29 de março de 2022

Cenas no Villa-Lobos, festa no château… Livro de memórias traz Alto dos Pinheiros como pano de fundo. Leia trechos

Foto: Cia. City

Um vislumbre do mais puro amor durante um passeio pelo parque Villa-Lobos. O sentimento de gratidão que subitamente brota na fila do restaurante do Sesc Pinheiros. A saudade das folhas que se acumulavam pelo jardim de uma bela casa em Alto dos Pinheiros. Em seu livro de memórias, a psicóloga e cronista Rosane Luz Buk costura uma série de lembranças vividas em nosso bairro para compor um retrato de sua própria trajetória, marcada tanto por alegrias ao lado de filhos e amigos, quanto pela franqueza com que trata de seus embates contra a bipolaridade e a solidão.

Veja a seguir alguns dos trechos de “Sobre Fúrias e Musas” que mostram um pouco de Alto dos Pinheiros pelos olhos da autora. A obra está disponível no formato impresso e é comercializada através do perfil de Rosane no Instagram (@jovemvelhabruxa). Há exemplares nas casinhas de livros do bairro.

Amor
Entro no Villa-Lobos (o parque, claro, odeio shopping) com a Luna, minha cadela dourada. E um casal estava passando a mão nela quando vejo caminhando na minha direção um homem que apoiava outra pessoa com o corpo totalmente retorcido.

(…)

Então o homem pegou a mão inerte daquela pessoa de cabelo curto e sexo indefinido e passou-a com delicadeza no pelo da cadela. Daí me esclareceu:

– Ela é minha esposa.

Olhei para aquela mulher maltratada pela doença, para o marido dela e fiquei mais uns minutos ainda na companhia deles, desejei boa tarde e dirigi-me ao interior do parque chorando. Foi uma caminhada triste e feliz ao mesmo tempo. Pensei na dureza da vida, mas, sobretudo, pensei no amor.

Tô mordida

Era sábado e eu tinha ido à biblioteca do parque Villa-Lobos usar a internet. Levei a Golden e voltava para casa feliz da vida porque eu gosto de andar, gosto da biblioteca e tinha um monte de gostosuras do Santa Luzia, presente da Adriana, me esperando na geladeira. O problema é que estou míope e sem óculos de grau, portanto só fui ver a maluca e seu cachorro brincando na praça depois que ele avistou a Luna e resolveu se aproximar (suas intenções, não tenho a menor ideia). Fiquei dura, gelada. E o cachorro da maluca é grande, vira-latas, parece uma versão maior do cachorro do antigo desenho animado branco de olho preto. Lindo, mas claramente com sangue pit bull.

Enquanto ele se aproximava, a maluca fala:

– Ele é bonzinho.

Pensei: bonzinho uma ova, li na rede social que ele mordeu um monte de gente. Mas calei-me, não era hora de tretar com dona de cachorro bravo que traz a fera solta na rua.

A Luna é medrosa, se submeteu e ele aplicou-lhe uma mordida e afastou-se um pouco. Mas continuou ali no pedaço. Como o cão não declarou as intenções e eu sempre tento resolver tudo no diálogo, falei:

– Você mordeu minha cadela! Eu ergui a mão. Nesse minuto a maluca, de longe, claramente apreensiva, gritou:

– Não briga! Ele ataca.

A maluca deve ser médium porque o cachorro preparou o bote e avançou. Não vi mais patavinas.

(…)

Retina

Ontem fui jantar no Sesc Pinheiros. Não é o La Tambouille, mas come-se bem por um preço para lá de honesto, que cabe no meu bolso. Na fila do penne com berinjela, tem um congestionamento causado por um punhado de indecisos. Engano meu, não eram indecisos. Eram cegos. Demorou uns quatro minutos para cair a minha ficha e perguntar a um moço segurando bengala branca:

– O senhor precisa de ajuda?

(…)

Agradeci a Deus, aos Orixás, à natureza e ao acaso pelos meus 100 por cento de visão, originais de fábrica, ainda que um pouco gastos.

Depois fui ao cinema, na Fradique. Assisti Rei Leão e o tal do Gato Chinês.

 

O Mago

(…)

Então, depois de alguns anos, a roda da vida girou e a fábrica que era a menina dos olhos do meu marido tinha que ser fechada. Não havia jeito. A abertura de mercado para concorrentes asiáticas e europeias feita pelo Collor, nos anos 90, inviabilizava a operação. O pai dos meus filhos chegou em casa carregando uma tristeza descomunal, que contaminou a nossa casa inteira.

Estava a família cada qual no seu canto, quando Tomás, que devia ter uns oito ou nove anos na época, falou:

– Vamos fazer uma festa.

Ele tinha esse registro. Morávamos numa casa térrea e espaçosa no Alto de Pinheiros que recebia gente para todo tipo de celebração a torto e a direito. Era Natal, batizados, aniversários de adultos e crianças.

Tomás não se fez de rogado, ligou uma música, pegou sua flauta, trouxe pratos e panelas – uns instrumentos improvisados para os irmãos pequenos. Eu que só toco campainha comecei a dançar. O pai levantou e apareceu com sua flauta transversa e logo a casa se encheu de música e alegria. Nós cinco morávamos juntos. E assim foi-se o dia.

(…)

Jardim

Não consigo viver sem jardim. Quando casei e mudei para um apartamento na Rua Girassol (era o maior sossego há 25 anos), fui ao Ceasa e comprei cinco vasos grandes que entulharam completamente a varanda. Tudo bem, eu via verde pela janela. Dava o maior trabalhão limpar as folhas de cada planta uma vez por semana, com uma esponja molhada que, espremida, esguichava um caldo preto e oleoso, resultado da qualidade da maravilhosa gasolina comercializada no país.

Do apartamento, saí para uma verdadeira casa de ricos no Alto de Pinheiros. Nesse meu château tinha dois jardins e meio (coisa refinada mesmo). Eu, a rainha da cocada preta, andava às voltas com três bebês. E do jardim, projetado pela célebre paisagista Maringá, cuidava Seu Manoel, o jardineiro-empresário e sua entourage.

(…)