27 de novembro de 2013

Os nano-prefeitos

Revista Época, 25/11/2013

A criação do Conselho Participativo Municipal dará a 1.125 representantes da população o poder de fiscalizar a gestão municipal e propor melhorias para seus bairros. Pode ser uma resposta aos recentes protestos das ruas. A eleição será no dia 8 de dezembro, com a costumeira articulação política e até pão com mortadela

ALINE RIBEIRO • ILUSTRAÇÕES ESPAÇO ILUSÓRIO

Embora não seja a mais óbvia, a mais expressiva resposta política para os milhões de paulistanos que ocuparam as ruas em protestos neste ano vai ganhar forma no próximo dia 8 de dezembro. Nessa data, a população elegerá os 1.125 integrantes do Conselho Participativo Municipal, uma nova estrutura de governança pública pensada para fiscalizar a gestão de São Paulo, apontar as prioridades locais e controlar o orçamento de cada bairro. Pode parecer só mais uma camada entre as várias que se sobrepõem na administração da cidade. Mas, ao menos em tese, o conselho permitirá a pequenos núcleos de poder influenciar as tomadas de decisão. “A prefeitura está dando um passo importante para o adensamento da democracia na cidade”, afirma o cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, professor da Fundação Getulio Vargas.

Desenhado para ser proporcionalmente ocupado pelas 32 subprefeituras da capital, o conselho é ideia do vereador da oposição Police Neto (PSD). A proposta foi aprovada em maio passado pelo prefeito Fernando Haddad (PT), e sua execução estava prevista para abril de 2014. O cronograma, porém, foi apressado numa tentativa de reverter a queda de popularidade de Haddad depois das manifestações. “É lógico que os protestos nos fizeram repensar a redemocratização e oferecer alternativas”, diz João Antonio da Silva Filho, secretário municipal de Relações Governamentais. “A eleição ainda neste ano é uma resposta ao clamor das ruas, ao pedido de maior participação nas administrações.” No começo de julho, semanas depois do início da revolta popular, Haddad figurava entre as principais vítimas políticas das manifestações, segundo uma pesquisa do Datafolha. Sua aprovação caiu 16 pontos percentuais, indo de 34% para 18%. E a reprovação, antes em 21%, chegou a 40%.

Em poucas cidades do mundo a descentralização da gestão faz tanto sentido como em São Paulo. Seus 1,5 mil quilômetros quadrados comportam quase 12 milhões de habitantes, mais de 50 parques, 4 mil praças. Seriam necessários pelo menos 160 dias caminhando sem parar para percorrer seus 17 mil quilômetros de vias. Com o conselho eleito, o morador de um bairro ganhará um canal direto de comunicação com a prefeitura. Seja para reivindicar reparos numa praça vizinha, seja para pedir o fechamento de um buraco na rua de casa. “As pessoas vão votar em seus representantes dentro de uma população delimitada”, afirma Monika Dowbor, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Assim fica estabelecida uma relação direta entre representante e representado.” A título de comparação, há hoje, em São Paulo, um vereador para cada 209 mil habitantes. Cada conselheiro representará 10 mil paulistanos.

Conselho Participativo Municipal _ed66_gráfico_620 (Foto: Época SP)

A tentativa de fracionar a autonomia entre territórios menores não é nova. Nos anos 1980, André Franco Montoro, então governador de São Paulo, descentralizou a administração do estado em 42 regiões. No âmbito municipal, a Lei Orgânica do Município, de 1990, previa a criação de conselhos de representantes num formato semelhante ao que será votado em dezembro. Sua principal atribuição era representar a população local. Depois de implantadas, essas estruturas foram vetadas por uma decisão judicial. “Com a reforma administrativa do Haddad, vi uma oportunidade de resgatar o conselho de representantes e trazê-lo à pauta”, afirma o vereador Police Neto. Pela proposta inicial, o Conselho Participativo seria deliberativo. Permitiria, portanto, que os conselheiros. decidissem quais as prioridades do bairro e onde investir
o orçamento das subprefeituras. Não foi aprovado.

A versão do projeto de lei que passou pelo crivo de Haddad é consultiva – o que desencadeou uma enxurrada de críticas. “O fato de existir um conselho é sem dúvida um avanço, resta saber quanto poder esses conselheiros terão”, diz o economista Odilon Guedes, da Rede Nossa São Paulo. “Não vai ser deliberativo porque quem recebeu, por voto, o direito de deliberar foi o Haddad. Se lá em Pirituba alguém da oposição for contra todo o plano de governo do prefeito, como fica?”, questiona o secretário João Antonio. Apesar de consultivo, o conselho terá 32 assentos em outro foro, o Conselho de Planejamento e Orçamento Participativos (CPOP), com 75 membros, que será criado para discutir o orçamento da capital.

Na prática, três fatores definirão qual será o impacto dos conselheiros. O primeiro é o resultado das eleições. Quanto mais eleitores comparecerem às urnas, mais influência terão os eleitos. “Se 2 milhões de pessoas aparecerem para votar, o conselho ganhará uma legitimidade que nenhum outro tem. Mesmo não sendo deliberativo”, afirma Jorge Kayano, pesquisador do Instituto Pólis.

O segundo diz respeito à importância das subprefeituras para o governo atual. Desde que foram criadas para descentralizar a administração, em 2002, as subs vêm perdendo poder. Subvalorizadas e com o orçamento mais enxuto a cada ano, foram reduzidas a zeladorias. A julgar pelo histórico, e também pela fatia do orçamento prevista para 2014 (leia o quadro à pág. 32), o conselho corre o risco de ser tímido. O terceiro é sua organização e capacidade de mobilização. “Não pode ser um lugar para tomar o chá das cinco”, afirma o comerciante Jorge Ifraim, candidato a conselheiro por Santana.

A eleição do Conselho Participativo não está imune às articulações políticas típicas dos jogos de poder. Para concorrer, cada postulante deveria apresentar uma lista com cem assinaturas de entusiastas de sua participação – uma maneira de atestar sua popularidade no bairro. Uma candidata da região Norte diz ter se deparado com uma situação reveladora. Segundo ela, um homem oferecia, no ato da candidatura dentro da subprefeitura, listas prontas para quem quisesse “representar” um grupo determinado. Transporte para os eleitores no dia da votação e pão com mortadela entravam no pacote de benefícios. Num outro caso, um paulistano que pretendia se candidatar desistiu depois de descobrir manobras ilegais de concorrentes.“Nós não vamos sair por aí procurando irregularidades. Se houver denúncia, apuramos, assim como faz a Justiça Eleitoral”, afirma o secretário João Antonio.

A criação de um sistema para distribuir o poder é tão sofisticada quanto perigosa. Se as maracutaias políticas não comprometerem a eleição, ou ainda se o conselho alcançar a legitimidade desejada, a prefeitura terá conseguido um grande avanço para a democracia. Mais que um fiscal da administração, o conselheiro poderá, no futuro, participar da construção dos planos de bairro, ferramenta prevista no Plano Diretor da cidade para, ao mesmo tempo, resolver problemas atuais e impedir que outros ocorram na vizinhança. Por outro lado, se o conselho tiver a função distorcida de servir os interesses de poucos, a investida terá sido um fracasso. Junto dela, fracassará a tentativa de reconstrução da imagem do prefeito Haddad.

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